Documento aparece como uma ferramenta para orientar estratégias pedagógicas de EAN continuada, que promovam a conexão com o alimento desde a infância
A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, por meio da Coordenadoria de Alimentação Escolar (CODAE), lançou um guia de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) para orientar práticas pedagógicas. A publicação é fruto de uma parceria com o Instituto Comida e Cultura (ICC) e a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).
Desde 2009, a EAN deve ser incluída no processo de ensino e aprendizagem, que perpassa o currículo escolar. Em 2018, a lei 13.666 incluiu a EAN como tema transversal no currículo da educação básica, reforçando sua importância para a vivência escolar de crianças e adolescentes. No entanto, mesmo com as diretrizes tendo sido estabelecidas, ainda há diversos desafios para que ações práticas aconteçam nas escolas da rede pública.
O objetivo do “Guia Orientador: Educação Alimentar e Nutricional nas Práticas Culinárias Pedagógicas” é auxiliar na promoção da EAN inclusive em unidades escolares com gestão de alimentação terceirizada, capacitando professores e cozinheiras para ampliar a presença do fazer culinário em espaços de aprendizagem plurais. O material destaca que, especialmente na educação infantil, a culinária desenvolve a coordenação motora fina e apoia o autoconhecimento e a autoconfiança, promovendo a experimentação de conquistas e limitações.
“Entendemos que esse guia fica como um legado da formação Cozinhas e Infâncias na cidade de São Paulo, para ser utilizado não só pelas educadoras que participaram do curso, mas por outras que estão nas escolas e as que virão. Foi feito para professoras, nutricionistas, cozinheiras e gestores escolares que queiram implementar educação alimentar no chão da escola”, explica Ariela Doctors, coordenadora-geral do ICC.
O curso Cozinhas e Infâncias acontece em São Paulo desde 2022, com foco nas escolas de educação infantil. A cidade tem a maior rede municipal de ensino do país, com mais de 1 milhão de alunos, o que faz com que projetos-piloto de EAN possam inspirar a adesão de outros municípios pelo Brasil afora. Professoras e cozinheiras escolares participam de aulas teóricas e vivências que as aproximam da história da alimentação, do ciclo de produção dos alimentos e seu impacto no meio ambiente, além das diversas influências culturais e hábitos alimentares.
“Já conseguimos colher mais de 450 intervenções no chão da escola, que foram atividades feitas pelas professoras junto às crianças. Isso mostra como a formação conseguiu multiplicar esses conhecimentos. Mas entendemos também, a partir da escuta das professoras no ano passado, que elas têm dificuldade na execução desse tipo de atividade. Sugerimos, então, que fosse criado um guia orientador para a implementação de atividades de EAN, mostrando quais são as possibilidades de fluxo junto à prefeitura”, completa Ariela.
Leonardo Spicacci Campos, coordenador da CODAE, diz que houve um aumento significativo de 15% na realização de oficinas culinárias nas EMEIs de São Paulo após o primeiro ano da formação Cozinhas e Infâncias. “Esse crescimento não só ampliou a oferta de atividades práticas de alimentação para as crianças, como também foi acompanhado de um aumento na participação de cozinheiras escolares como promotoras de ações de EAN. A formação foi um marco tão relevante que se destacou como uma das capacitações externas mais mencionadas pelos profissionais da rede em 2023, sinalizando o impacto positivo e o reconhecimento dessa iniciativa no ambiente escolar”, afirma Campos.
O Guia Orientador vem, então, como um desdobramento da formação para orientar as equipes escolares na realização das oficinas culinárias, abordando desde o planejamento até o suporte possível das empresas terceirizadas de alimentação escolar e orientações para a implantação de cozinhas pedagógicas.

De acordo com o material, o sucesso da estratégia pedagógica depende da escolha de receitas viáveis e descomplicadas, que estejam presentes no Programa de Alimentação Escolar da Rede Municipal de Educação de São Paulo. Isso porque os estudantes vão poder prová-las na escola, aprender a prepará-las e replicar esse preparo no ambiente doméstico, ampliando o alcance da EAN para as famílias e comunidades.
“Professores que possam obter informações sobre uma alimentação adequada, saudável e sustentável, como parte dos conteúdos da EAN, são futuros agentes de transformação. Crianças e adolescentes estão a maior parte do tempo dentro da escola, portanto, este é um ambiente favorável para criar novos hábitos e um estilo de vida melhor. Serão crianças e adolescentes conscientes de sua saúde e da saúde do planeta”, destaca Betzabeth Slater, professora e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP.
O coordenador da CODAE revela que o Guia Orientador já tem rendido retornos positivos dos colaboradores da rede municipal, o que mostra que o material estaria atendendo às necessidades das escolas. “Já recebemos solicitações para realizar oficinas culinárias utilizando o fluxo apresentado no guia. Essa ação será fundamental para promover mais atividades de educação alimentar e nutricional nas unidades, ajudando a criar um ambiente que valorize a alimentação saudável e que impacte positivamente na qualidade do programa de alimentação escolar.”
Educação com foco no Guia Alimentar
As recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira devem perpassar o desenvolvimento da EAN nos currículos e processos pedagógicos. Um exemplo foi o pedido recente do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), representando dezenas de organizações da sociedade civil, pela inclusão da educação alimentar no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), demonstrando a carência de materiais didáticos que promovam a alimentação adequada e saudável, com atenção às culturas alimentares. Diante dessa lacuna, iniciativas como o Guia Orientador lançado em São Paulo se mostram necessárias e bem-vindas para os educadores.
Na atual versão do Guia Alimentar, a nutrição se abriu às práticas e hábitos alimentares dos territórios. As comidas tradicionais variam de uma região à outra do Brasil, e a educação deve acompanhar essa transição tanto no cardápio escolar, oferecido com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), quanto nas atividades pedagógicas.
Familiarizar-se com os grupos de alimentos e não apenas com nutrientes dá autonomia às crianças, para que se tornem adultos conscientes de suas escolhas alimentares. “Ter conhecimento de qualquer coisa nos liberta e empodera. Imagine a potência de saber que o que escolhemos e compramos faz bem à nossa saúde. De outro lado, manter um povo ignorante é uma forma de opressão”, defende Betzabeth Slater.
“Há 15 ou 20 anos, nos preocupávamos em contar calorias e nutrientes e oferecíamos cardápios cheios de alimentos fora da realidade cultural e social dos indivíduos, e em quantidades totalmente desconectadas. Com a classificação NOVA, crianças, jovens, adultos e idosos podem compreender que comer é parte de se sentir humano, e que não somos apenas corpos que necessitam de combustível para viver”, completa.
Ancestralidade e saúde do planeta
A EAN anda de mãos dadas com a educação ambiental, em especial diante da emergência climática e da necessidade de rever os modelos atuais de produção de alimentos. Os povos indígenas, os quilombolas e as comunidades tradicionais são detentores de saberes ancestrais de uso sustentável dos recursos naturais para a produção de alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos e fertilizantes químicos.
Para Daniella Brochado, coordenadora pedagógica e de relações étnico-raciais do ICC, resgatar esses saberes por meio da educação alimentar e ambiental é fundamental. O Guia Orientador de São Paulo buscou abarcar a relação entre o que comemos e como produzimos e descartamos os alimentos.
“Conhecimentos, saberes e sabores encantam, atribuem identidade e pertencimento aos indivíduos e às comunidades. Além das diversas conexões com as quais a ancestralidade se relaciona, pensá-la do ponto de vista da alimentação é pensar que as preferências alimentares e as escolhas que fazemos com relação ao que comemos também é ancestral, nos conecta com as histórias das vidas do entorno, dos territórios e das culturas que serviram e servem de chão para o existir”, diz Daniella.
É fundamental pensar na conexão com o território no qual as escolas estão inseridas ao criar projetos de EAN. O material lançado em São Paulo, inclusive, é o segundo Guia Orientador fruto do programa Cozinhas e Infâncias. O primeiro documento foi desenhado com foco na realidade sociocultural e biodiversa da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, no bioma do Cerrado brasileiro.
Parafraseando o conceito de escrevivência de Conceição Evaristo, Daniella fala em “experivivenciar” a alimentação com as crianças, em um processo lúdico que pode potencializar a forma com que elas compreendem a linguagem da natureza e se reconectam com ela.
“Segundo o cosmograma Bakongo, que faz parte da filosofia africana, a ancestralidade habita um grande ciclo vital, que acontece numa circularidade ininterrupta. Ela ancora, sustenta, dá sentido à existência, reverencia o que veio antes, escuta atentamente as gerações passadas e se relaciona com as memórias coletivas que se costuram no tempo. A conexão com os alimentos, com as receitas, com os afetos e com as emoções que nos atravessam vem desse lugar.”
Acesse aqui o conteúdo do Guia Orientador de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) para práticas pedagógicas de São Paulo.