No caminho da luz, todo mundo é preto: educação alimentar racializada para sistemas alimentares mais justos e saudáveis

Artigo de Bruna Crioula, Letícia Borges e Natália Escouto, curadoras da Crioula Curadoria Alimentar “No caminho da luz, todo mundo é preto.” Essa frase, imortalizada na canção Principía, de Emicida, ilumina um princípio fundamental: se a luz é a convergência de todas as cores, a educação alimentar racializada é um chamado para se reencontrar e incorporar pela centralidade da negritude na construção dos saberes alimentares que sustentam nossas comunidades. Alimentação é memória, tecnologia social e conexão com o sagrado. Comer é um ato carregado de sentidos, e nesse ato reconhecemos que a comida é também história, cultura e patrimônio que precisa ser cuidado, zelado e difundido entre gerações de forma contínua e permanente. Aprendemos com nossas mestras, mestres e matriarcas, como Nego Bispo e Makota Valdina, que a alimentação nunca foi apenas sobre nutrientes e calorias, mas sobre pertencimento e autonomia. Fomos socializados a partir de uma visão eurocêntrica que nos afastou das conexões ancestrais que sempre nos foram passadas através do alimento. Mas comida é resgate. Sabor e estética se confundem com histórias e sensações. Cada tempero, cada prato, cada ritual ao redor da mesa carrega ensinamentos que sobrevivem ao tempo. A Crioula Curadoria Alimentar nasce desse desejo de reencontro. Trabalhamos para fortalecer saberes africanos e indígenas sobre alimentação, promovendo uma educação alimentar que respeita e valoriza a diversidade dos sistemas alimentares tradicionais. Nossa ESCOLACrioula – ancestralidade alimenta é um espaço de aprendizado e compartilhamento, onde a comida volta a ocupar seu lugar como ferramenta de saúde, soberania alimentar e justiça social. Nosso curso “Alimentação Saudável numa Afroperspectiva” questiona o que significa se alimentar bem. O que é saúde quando olhamos desde as cosmovisões negras e diaspóricas? Como os alimentos tradicionais das nossas culturas sustentaram vidas e resistências por séculos? Mergulhamos nos saberes alimentares que sempre promoveram equilíbrio, longevidade e bem-estar, antes mesmo que a ciência ocidental os validasse. Saúde não é apenas ausência de doença, mas também prazer, memória e conexão com a terra. Já em “Mato é Comida? Conheça as PANC ancestrais”, nos aproximamos da sociobiodiversidade alimentar e o conhecimento sobre as Plantas Alimentícias Não Colonizadas (PANC ancestrais), que sempre estiveram presentes nas cozinhas quilombolas, indígenas e periféricas. Muitas dessas plantas, hoje esquecidas ou marginalizadas, já foram fundamentais para a segurança alimentar de nossas comunidades. Resgatar esses saberes é um ato de autonomia e resistência. Imaginamos um mundo onde a merenda escolar invada as salas de aula, onde professores utilizam uma receita ou um ingrediente para ensinar história, geografia e ciências. Onde cozinhas comunitárias se tornam espaços de aprendizado, onde agricultoras, merendeiras e cozinheiras de quilombos e terreiros compartilham seu conhecimento como protagonistas de uma nova educação alimentar. Precisamos romper com a lógica de que aprender sobre comida é um exercício distante de quem cozinha, planta e cuida da alimentação. Pensar em uma educação alimentar racializada é partir de um berço cultural africano e diaspórico, onde a relação entre ser humano e natureza é de integração e não de exploração. É aprender a olhar para nossos sistemas alimentares com a consciência de que a monocultura, a fome e a desnutrição são construções coloniais. É resgatar o que sempre foi nosso: a autonomia sobre o que plantamos, preparamos e comemos. Se nossos pratos são janelas para entender o mundo, queremos que cada refeição seja um convite à memória, à identidade e à transformação. No caminho da luz, todo mundo é preto. E a Crioula Curadoria Alimentar segue abrindo caminhos para que essa luz brilhe cada vez mais forte cozinhando ideias para futuros nutridos. Sobre as autoras Bruna Crioula – nutricionista ecológica, mestre em Ciências. Matrigestora da Crioula Curadoria Alimentar e Coordenadora Geral da ESCOLACrioula – ancestralidade alimenta. Natália Escouto – gastróloga, pesquisadora e educadora alimentar. Especialista em Educação Alimentar. Curadora e Coordenadora Pedagógica na Crioula Curadoria Alimentar. Escreve sobre alimentação no projeto Cozinhe sua História. Letícia Borges – cozinheira, idealizadora e gestora da Folias Gastronômicas, educadora alimentar, e entusiasta das PANC ancestrais. Oferecer esse conhecimento usando as possibilidades encontradas na natureza e transformar a relação das pessoas com o alimento é seu propósito. Focalizadora de Danças Circulares Sagradas, doula, mãe do João e do Pedro. Filha de Terezinha e neta de Isaltina, poeta e curadora na Crioula Curadoria Alimentar.
Tomate: você sabia que este fruto é latinoamericano?

Quem nunca olhou para um tomate, ou ainda, para um pote de molho de tomate, e logo pensou em algum prato italiano? A crença de que os tomates são nativos da Itália passa de geração em geração, já que a fruta – sim, o tomate é um fruto! – é um ícone da culinária italiana, usado em muitos pratos, incluindo massas, ensopados e conservas. Sua origem, no entanto, está na América Latina. A jornada do tomate começou como uma planta selvagem encontrada no Equador, no Peru e no Chile. Depois, foi migrando mais para o norte do continente, onde os maias e os astecas trabalharam seu cultivo e modificaram a planta em variedades maiores e mais comestíveis. O nome “tomate”, inclusive, vem da palavra asteca para a planta, “tomatl”. As expedições de Cristóvão Colombo, sob as ordens da Coroa Espanhola, deram início à migração dos alimentos americanos para a Europa. De lá, se espalharam também pela África e pela Ásia, levados na bagagem de comerciantes. Assim, o tomate chegou à Itália ainda no século 16 e, por algum tempo, não caiu no gosto dos europeus por ser considerado uma planta tóxica. “Na própria Itália, embora do tomate fosse comido em salada – ‘com sal, pimenta e óleo, como se comem pepinos’, dizia em 1704 o Dicionário de Trévaux –, o molho de tomate, como tempero para massas, apareceu tardiamente: no século 18, nem os livros de cozinha nem os viajantes registram sua existência”, explicam os pesquisadores Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari no livro História da Alimentação. A popularização do tomate na Itália só aconteceu no século 19, quando o espaguete ao pomodoro (tomate, em italiano) ganhou as cozinhas e as barracas de comida de Nápoles, no sul do país. Mas a grande virada veio no século 20, quando muitos imigrantes italianos chegaram aos Estados Unidos e passaram a importar as conservas de tomate, seja em pasta, passata ou molho, da Itália. Nessa época, os produtos também eram exportados para o Reino Unido e logo se tornaram um símbolo da economia e da cultura italiana. A variedade mais famosa dos tomates italianos é a San Marzano. Uma curiosidade é que, atualmente, os frutos dessa variedade consumidos na Itália e pelo mundo são, na verdade, produzidos nos Estados Unidos. Um tesouro nacional que hoje precisa ser importado pelos italianos devido à forma como produzimos os alimentos em todo o mundo, uma agricultura intensiva que agride o meio ambiente. No Brasil, o tomate está nas saladas dos PFs, nas feiras, no quintal de casa, nos jardins comestíveis do bairro e na merenda escolar. É um fruto americano, que podemos celebrar e saborear com gosto. Sugerimos que experimente diversificar seus usos, como na brusqueta de tomate e cambuci que publicamos no e-book Receitas com memórias, produzido pelo Instituto Comida e Cultura (ICC) em 2024. O material foi entregue às cozinheiras escolares participantes do Programa Cozinhas e Infâncias em São Paulo, uma parceria do ICC com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Acesse aqui a receita da Brusqueta de tomate e cambuci, super prática para fazer com as crianças. Esperamos que goste!
Receita Cozinhas e Infâncias: brusqueta de cambuci

O tomate está presente em muitas receitas pelo Brasil afora, desde saladas e vinagretes até molhos e ensopados diversos. Ele é um fruto nativo da América, como explicamos neste artigo do site. Mas queremos propor um passeio pela nossa terra com outra fruta latinoamericana, dessa vez nativa do Brasil: o cambuci. O cambuci é originário do bioma da Mata Atlântica, com maior incidência no estado de São Paulo. O cambucizeiro pode chegar a oito metros de altura e dá frutos de formato ovóide, que lembram um disco voador, que amadurecem de janeiro a abril. São ligeiramente doces, mas com acidez que faz as vezes do limão em alguns preparos. Aqui, sugerimos um delicioso encontro entre duas frutas nativas do nosso continente em uma brusqueta de tomate e cambuci. A receita faz parte do e-book do Programa Cozinhas & Infâncias, disponibilizado para as cozinheiras escolares da rede de ensino infantil cidade de São Paulo, em 2024. O projeto foi uma parceria entre o Instituto Comida e Cultura, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Confira a receita! Brusqueta de tomate e cambuci Rendimento: mais de 30 porções Ingredientes 3 unidades de pão italiano fatiado 18 unidades de tomates italianos médios e maduros 6 cambucis frescos 6 dentes de alho Azeite de oliva Sal a gosto 150 g de queijo parmesão (pedaço) 1 maço de manjericão fresco Modo de preparo Corte um dente de alho ao meio e esfregue em cada fatia de pão italiano. Disponha as fatias em uma assadeira e leve ao forno preaquecido a 180ºC por 10 minutos. Enquanto isso, pique os tomates, os cambucis e os dentes de alho e junte tudo em uma tigela. Regue com azeite, tempere com sal e misture. Rale o queijo parmesão. Coloque o vinagrete sobre as torradas e cubra com o parmesão ralado. Leve ao forno apenas para gratinar. Acrescente as folhas de manjericão sobre as brusquetas e sirva imediatamente.
Alimentação tradicional nas escolas de Mato Grosso gera renda e fortalece cultura, saúde e meio ambiente

Articulações entre Catrapovos – MT, sociedade civil, poder público e povos e comunidades tradicionais ampliam acesso ao PNAE Conteúdo original do Instituto Socioambiental, com reportagem de Ana Amélia Hamdan Banana, manga, mamão, pequi, cana, macaxeira, murici, tucunaré, matrinxã, pintado, amendoim, mel, pirão, beiju. Já pensou ter seus filhos e filhas matriculados em uma escola que ofereça aos alunos produtos recém-colhidos nas roças e na floresta, além de peixes frescos? Alimentos como esses, que saem das mãos e do trabalho de pequenos produtores — muitos deles pais e parentes dos estudantes — estão chegando a algumas escolas de Mato Grosso. Um exemplo é a Escola Estadual Indígena Hadori, na Terra Indígena São Domingos, do povo Iny, conhecido como Karajá, no município de Luciara (MT), que está desenvolvendo um projeto-piloto e este ano irá fornecer a seus cerca de 90 alunos alimentos produzidos na própria comunidade. Essa mudança está acontecendo com a articulação da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos em Mato Grosso (Catrapovos – MT). A comissão reúne parceiros e busca a adequação e ampliação do acesso ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), possibilitando que agricultores indígenas, quilombolas, extrativistas, retireiros, pantaneiros, morroquianos e ribeirinhos consigam fornecer seus produtos às escolas das comunidades. No cardápio da Escola Hadori, a língua indígena já indica a mudança que vai aparecer no prato. Os alunos vão poder comer Irá mare (mandioca e beiju), Krose (cucuz), Ijore Benôra (sopa de peixe), Uxé (farofa de peixe) e Iwerú (canjica). Diretor da escola, Célio Kawina Ijavari comemorou. “Nosso povo vai vender peixe, farinha, abóbora, batata doce, mandioca. Vai melhorar a merenda!” A chamada pública específica para aquisição dos alimentos dos povos e comunidades tradicionais aconteceu no início deste ano, sendo que seis produtores da comunidade foram cadastrados. Célio Kawina Ijavari conta que, no ano passado, a escola promoveu uma atividade sobre alimentação saudável e serviu pratos tradicionais, usando os produtos locais. A comunidade escolar aprovou. “A comunidade pensou em vender o seu produto para os alunos comerem, valorizando a alimentação do nosso povo e incentivando o cultivo. Essa é a nossa ideia”, relatou. Segundo o diretor, na comunidade, as pessoas estão consumindo muitos industrializados. O programa pode apoiar no resgate da alimentação tradicional e mais saudável. E, ainda, incentivar o sistema agrícola tradicional do povo Iny, inclusive despertando o interesse dos mais jovens. Catrapovos As ações que vêm acontecendo a partir da Catrapovos – MT têm como semente a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), criada por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) e que busca a adequação de políticas públicas de aquisição de alimentos à realidade local dos povos e comunidades tradicionais. A iniciativa acabou se transformando em uma mesa nacional permanente de debates sobre o tema e dando origem às comissões nos estados. “A política impulsiona toda uma cadeia positiva. E a Catrapovos busca desburocratizar e ampliar acessos e benefícios, fortalecendo os sistemas agrícolas, a alimentação saudável e as tradições por trás de cada alimento. Também, promove a geração de renda local, sendo alternativa a outros sistemas que trazem grandes impactos aos territórios e aos modos de vida tradicionais, como madeira, soja e garimpo”, explicou o engenheiro agrônomo Marcelo Martins, analista do ISA e atuante na Catrapovos – MT. Em Mato Grosso, o grupo foi formalizado em junho de 2022 e se reúne mensalmente. Marcelo Martins contou que um dos primeiros passos foi a elaboração do regimento e da carta de princípios. A antropóloga Luísa Tui Rodrigues Sampaio, analista do ISA, também integra a Catrapovos – MT. “Com nossa atuação, estamos unindo as pontas, ou seja, os produtores, as escolas e as entidades parceiras, como a Secretaria de Estado de Educação, a Seduc”, disse. Outro trabalho que vem sendo desenvolvido junto às comunidades a partir da Catrapovos é o levantamento da produção: qual alimento pode ser fornecido e em qual quantidade. A informação é repassada para a Seduc, que elabora o cardápio incluindo os produtos tradicionais. A Funai também está produzindo um diagnóstico da produção em algumas das comunidades indígenas. “Buscamos soluções por meio do debate sobre a alimentação. E esse diálogo se relaciona com a segurança e a soberania alimentar e com outros temas urgentes, como mudanças climáticas, queimadas, desmatamento e uso de agrotóxicos. As comunidades já vêm percebendo, há mais tempo, impactos como a perda de sementes e a dificuldade em alguns cultivos.” Gestor de projetos no ICV, Eriberto Muller relatou que, em dois anos de atuação, a Catrapovos – MT conseguiu avanços importantes ao reunir instituições em torno da pauta da alimentação tradicional nas escolas. Um dos impactos positivos que ele cita é na saúde. “As mulheres indígenas relatam aumento de doenças como diabetes e colesterol alto que foram trazidas pelas alimentação convencional nas aldeias e nas escolas. Esse depoimento é preocupante”, afirmou. Ele apontou ainda que a mobilização da comunidade para participação no PNAE promove o reconhecimento do potencial produtivo dos povos tradicionais, abrindo possibilidades de novos caminhos, como fornecimento de produtos para outros mercados institucionais, por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Yaiku Suyá, representante da Associação Terra Indigena Xingu (Atix) na Catrapovos – MT, reforçou que é muito importante que a alimentação tradicional esteja nas escolas. “O alimento tradicional é muito rico, traz saúde. A comida de fora, da cidade, a gente não sabe a maneira que foi feita e pode fazer mal. Sabemos que tem muito agrotóxico”, refletiu. Ele ponderou que a lista de alimentos que podem ser vendidos às escolas deve ser ampliada, com inclusão de itens locais. Projeto-piloto A Escola Estadual Indígena Hadori foi escolhida para desenvolver o projeto-piloto porque reuniu as condições para participar do PNAE — a escola estava mobilizada e havia agricultores interessados em fornecer seus produtos. Mas, ainda assim, não conseguia acessar o programa. Um grupo de trabalho envolvendo a Secretaria Executiva da Catrapovos e o MPF-MT, por meio do procurador Ricardo Pael Ardenghi, foi responsável pela mobilização para a execução do projeto-piloto e irá acompanhar de perto as ações para identificar gargalos e potenciais. A experiência poderá ser expandida para outras