Por Claudia Cheron König e Bruno Valim Magalhães, colaboradores do blog do ICC. Originalmente publicado no NEXO Políticas Públicas.
O Dia Mundial da Alimentação, celebrado em 16 de outubro para marcar a fundação da FAO, o tema de 2025 — “De mãos dadas por alimentos e um futuro melhor” — chama países e setores a fazerem juntos o que ainda falta para dietas saudáveis caberem no prato de quem mais precisa. O Brasil chega a esta data com um pacote de normas capaz de acelerar essa entrega, sobretudo para as crianças, público mais vulnerável e prioritário. A questão, agora, não é o desenho da política, mas executá-la com coordenação e prestação de contas.
O Brasil chega a esta data com um pacote de normas capaz de acelerar essa entrega, sobretudo para as crianças, público mais vulnerável e prioritário.
Há boas notícias: segundo o Sofi 2025, o Brasil voltou a ficar abaixo de 2,5% de subalimentação na média recente, saindo novamente do Mapa da Fome. Mas a tarefa está longe de concluída: 13,5% da população (cerca de 28,5 milhões de pessoas) ainda vive insegurança alimentar moderada ou grave. O recado é claro: comemorar a saída do mapa não substitui entregar comida adequada e fresca, todos os dias, para as infâncias brasileiras.
Não faltam políticas, o que falta é fazer junto. Dar nome certo aos problemas e apostar na intersetorialidade são pré-condições para proteger as infâncias. O passo seguinte é transformar as novas leis em rotina na escola, nos equipamentos públicos e nas doações, com dados públicos simples de acompanhar. O país chega a esta data com um pacote de avanços no arcabouço legal aprovado em setembro de 2025. Novas normas para programas existentes que, se bem executadas, podem transformar a forma como produzimos, distribuímos e consumimos alimentos, especialmente para crianças, o grupo mais vulnerável nutricionalmente.
O que mudou
1) Alimentação escolar com 45% da agricultura familiar (a partir de 1º/01/2026)
A nova lei (Lei nº 15.226/2025) eleva de 30% para 45% a parcela mínima dos recursos do PNAE destinada à compra direta da agricultura familiar, e define uma regra de validade mínima para os produtos entregues (dispensada para alimentos da
agricultura familiar). A lei eleva a qualidade do cardápio, renda local e diversidade de fornecedores (com prioridade para mulheres, povos indígenas e comunidades quilombolas).
2) Doação segura e visível: PNCPDA + Selo Doador de Alimentos (Lei nº 15.224/2025)
A PNCPDA (Política Nacional de Combate à Perda e ao Desperdício de Alimentos) criou o Selo Doador de Alimentos, concedido a estabelecimentos que doarem conforme regras sanitárias. O selo tem validade de 2 anos, exige renovação e haverá divulgação pública das empresas certificadas — condições que ampliam transparência e permitem controle social.
Além disso, a lei detalha requisitos para doações de alimentos perecíveis e preparados com segurança e rastreabilidade. Agora é regulamentar e publicar a lista de selos emitidos e renovados. A regulamentação federal definirá os procedimentos e a governança (MAPA/MDS/Anvisa), com adesão voluntária de estabelecimentos e implementação local pelas prefeituras. O
monitoramento poderá ser feito pelo número de selos emitidos/renovados, toneladas de alimentos doadas com rastreabilidade, percentual destinado à infância e não conformidades sanitárias.
3) Resposta com comida na mesa: PAA e Cozinhas Solidárias
A Lei 14.628/2023 atualizou o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e instituiu o Programa Cozinha Solidária, cujo Decreto 11.937/2024 regulamenta a operação. O arranjo combina compra pública de alimentos de agricultores familiares com uma rede de refeições prontas em territórios vulneráveis — crucial em períodos de alta de preços e em emergências. É política de abastecimento e de proteção social, ao mesmo tempo. Caberá ao MDS coordenar a implementação do PAA com estados e municípios, e do Programa Cozinha Solidária em parceria com prefeituras e organizações da sociedade civil. A avaliação poderá ser feita pelo número de unidades ativas, refeições servidas por dia, custo por refeição e cobertura territorial.
Mas leis sozinhas não alimentam ninguém. O impacto depende da coordenação entre governos, sociedade civil, setor privado e filantropia para transformar normas em entregas concretas. As mudanças legislativas oferecem instrumentos claros para aproximar quem produz de quem mais precisa, reduzir perdas e fortalecer a rede pública de proteção alimentar. O próximo passo é fazer com que essas ferramentas saiam do papel e cheguem aos territórios onde a fome é mais persistente.
Por que isso protege as infâncias (Saúde Única)?
Saúde Unica (One Health) é uma abordagem integrada que busca equilibrar e otimizar a saúde de pessoas, animais e ecossistemas. Alimentação escolar com frescor e diversidade, redução de perdas e doações seguras significam menos exposição a ambientes alimentares adversos, menor desperdício e respostas mais rápidas a choques — tudo isso protege a saúde de crianças hoje e no futuro. É a tradução prática de One Health no cotidiano da cidade e do campo.
Ainda temos o papel de empresas e filantropia que complementam a execução: as empresas precisam reduzir as perdas, conectando compromissos voluntários ao Selo Doador; Já a filantropia pode financiar projetos-piloto, cadeias frias, avaliações independentes e painéis públicos com indicadores claros: percentual de compras da agricultura familiar, número de estabelecimentos com selo e toneladas de alimentos doadas rastreáveis.
Nos próximos anos, o objetivo é tornar visível e mensurável essa transformação, garantindo rapidez de resposta em emergências. Leis existem; o passo decisivo é medir o que importa e publicar os dados regularmente, para que políticas públicas deixem de ser conceitos e se reflitam concretamente no prato de milhões de crianças.
Essa régua simples de três indicadores — que propusemos no material técnico de base, este Policy Brief recentemente lançado pelo Instituto Pensi — ajuda governos a ajustar rotas, empresas a prestar contas e a sociedade a cobrar resultados.
Quem faz acontecer
- Governo (União, estados e municípios): implementar as regras, publicar dados trimestrais e priorizar municípios com maior vulnerabilidade.
- Empresas: alinhar compromissos voluntários ao Selo Doador e reduzir perdas ao longo da cadeia, com metas e resultados verificáveis. O Radar All4Food — iniciativa do Instituto Pensi e parceiros — oferece categorias e indicadores para comparar práticas e dar transparência ao setor.
- Filantropia: financiar pilotos escaláveis (escola–agricultura familiar), apoiar bancos de alimentos e cadeias frias, além de avaliações independentes e painéis públicos de indicadores — a ponte entre a lei e a entrega.
Em termos simples
As leis foram aprovadas e o caminho está traçado. O que separa o calendário do prato é publicar, com regularidade, três números que qualquer cidadão compreenda: quanto da merenda vem da agricultura familiar, quem está doando com segurança e quantas refeições chegam rápido onde a fome bate mais forte. Se medirmos o que importa — e agirmos quando os números piorarem — daremos ao Dia Mundial da Alimentação osseu sentido concreto: crianças bem alimentadas, todos os dias.
BIBLIOGRAFIA
Elias, L. P.; Perin, G.; Silva, J. O.; Vidigal, L.; Marques, F. J. “Construção de sistemas
alimentares saudáveis, sustentáveis e inclusivos através das compras públicas de
alimentos da agricultura familiar: uma revisão integrativa”. Revista de Economia e
Sociologia Rural, v. 63, p. e286963, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2025.
FAO; IFAD; Unicef; WFP; WHO. The State of Food Security and Nutrition in the World Roma: FAO, 2025.
HLPE – High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition. Food Security and Nutrition: Building a Global Narrative toward 2030. Roma: Committee on World Food Security, 2020.