Educação Alimentar e Nutricional: uma resposta sistêmica à sindemia global

Artigo de Ariela Doctors e Brena Barreto Você já ouviu falar em sindemia? Esse termo está relacionado aos desafios que enfrentamos atualmente na saúde pública, principalmente quando falamos de alimentação, doenças crônicas e mudanças climáticas. Ele também nos ajuda a entender por que a Educação Alimentar e Nutricional (EAN), a Educação Sistêmica, e a Educação Ambiental são necessárias, principalmente na infância. O conceito de sindemia global descreve a interação entre três crises contemporâneas: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas¹. Elas coexistem e se potencializam, compartilhando as mesmas causas, como sistemas alimentares insustentáveis e desigualdades sociais. Seus efeitos não são iguais para todas as populações, afetando desproporcionalmente grupos mais vulneráveis, como as crianças. Os efeitos da sindemia global na infância A má alimentação na infância, seja por excesso ou por deficiência de nutrientes, pode comprometer o crescimento físico e o desenvolvimento cognitivo ao longo da vida. Milhões de crianças em todo o mundo enfrentam simultaneamente as diferentes formas de má nutrição (como desnutrição, obesidade e deficiências nutricionais), em um contexto marcado pelo aumento do consumo de alimentos ultraprocessados. Esses produtos, estão associados a um maior risco de obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis². Somam-se a esse quadro os efeitos dos eventos climáticos extremos, como enchentes e secas, que impactam a produção de alimentos, dificultando o acesso a alimentos frescos e nutritivos. Crianças que vivem em comunidades de baixa renda e em zonas rurais estão entre as mais impactadas por essa realidade³. Diante dessa complexidade, precisamos de respostas que não se limitem a soluções pontuais ou técnicas. É nesse cenário que a EAN, aliada à Educação Ambiental e à Educação Sistêmica, se torna uma estratégia transformadora. Educação Sistêmica: enxergar as conexões A Educação Sistêmica propõe olhar o mundo de forma integrada4. Em vez de tratar saúde, alimentação, meio ambiente e cultura como temas separados, ela reconhece as interconexões entre eles. Essa abordagem convida escolas a integrarem saberes, territórios e afetos, promovendo uma aprendizagem significativa e comprometida com a vida. Quando aplicada à EAN, a visão sistêmica permite entender que comer não é apenas uma necessidade biológica, mas um ato cultural, político, ambiental e relacional. Ao desenvolver esse olhar nas crianças e jovens, a escola contribui para formar cidadãos conscientes do seu papel na transformação do mundo. A escola como espaço de transformação No Brasil, a Lei nº 11.947/2009 fortaleceu o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)5, garantindo refeições saudáveis na escola e incentivando a compra de alimentos da agricultura familiar. Com a Lei nº 13.666/2018, a EAN passou a fazer parte do currículo escolar, reafirmando seu papel na formação integral. Mas a educação alimentar não se resume a conteúdos sobre nutrientes. Na prática, ela se manifesta em hortas pedagógicas, oficinas de culinária, rodas de conversa, visitas a feiras, projetos sobre agroecologia. Tudo isso ajuda os estudantes a refletirem: o que comemos? De onde vem? Como é produzido? Quem lucra e quem perde nesse processo? Educação alimentar e ambiental: o mesmo caminho A crise ambiental e alimentar têm uma raiz comum: um sistema que desrespeita os ciclos da natureza, os saberes tradicionais e os direitos humanos. Produção intensiva, uso de agrotóxicos, desperdício e emissão de gases de efeito estufa fazem da alimentação um dos principais vetores da destruição ambiental. Por isso, Educação Alimentar e Ambiental precisam andar juntas — e de forma sistêmica. Ao trabalhar com os estudantes os impactos do consumo alimentar, a valorização da cultura local, a importância da sociobiodiversidade e o respeito à terra, a escola contribui para uma mudança de consciência que se traduz em atitudes. Comer é um ato político e relacional Inspirada em Paulo Freire6, a EAN defende o diálogo, a escuta e a valorização das experiências alimentares dos sujeitos. Comer é um ato político, afetivo e identitário. É também um ato de pertencimento: ao corpo, à comunidade, ao território.Frente à sindemia global, uma educação com visão sistêmica é mais do que necessária — é urgente. Ela nos ajuda a compreender o mundo como uma teia de relações vivas, e nos convida a agir com consciência, responsabilidade e empatia.Educar para comer melhor é, também, educar para ser, conviver, transformar, reconhecer e defender direitos. E esse caminho pode começar no cotidiano das escolas! REFERÊNCIAS Sobre as autoras Ariela Doctors é coordenadora-geral e coautora dos processos pedagógicos do Instituto Comida e Cultura, é comunicadora, escritora e chef de cozinha. Membro do Conselho Educação e Território do Instituto Aprendiz, tem ampla experiência em educação sistêmica e cursa mestrado em Nutrição em Saúde Pública na USP. Brena Barreto Barbosa é pesquisadora e mentora do Sustentarea. É Mestra em Nutrição e Saúde pela Universidade Estadual do Ceará.
Governo federal publica documento em apoio à inclusão da Educação Alimentar e Nutricional nas escolas

O governo federal publicou, no dia 29 de maio, uma nota técnica que tem o objetivo de fortalecer a inclusão da Educação Alimentar e Nutricional (EAN) no currículo escolar e no Projeto Político-Pedagógico (PPP). O foco do documento são as escolas públicas da Educação Básica vinculadas ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O Instituto Comida e Cultura foi uma das organizações da sociedade civil convidadas a colaborar com a nota, consolidada pela Divisão de Educação Alimentar e Nutricional (DIEAN), que faz parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O documento propõe que sejam seguidas as diretrizes da lei nº 11.947, que regulamentou o PNAE, no que diz respeito à educação alimentar. No Art. 2º, está prevista “a inclusão da Educação Alimentar e Nutricional no processo de ensino e aprendizagem, que perpassa pelo currículo escolar, abordando o tema alimentação e nutrição e o desenvolvimento de práticas saudáveis de vida, na perspectiva da segurança alimentar e nutricional”. A lei nº 13.666 também é referenciada, já que prevê que a EAN seja incluída transversalmente nos currículos escolares, ou seja, que possa fazer parte de toda e qualquer disciplina. Assim, a promoção da alimentação adequada e saudável nas escolas vai além da oferta de refeições nutricionalmente equilibradas. São necessárias práticas pedagógicas que promovam reflexões críticas sobre o que e como comemos, para estimular a autonomia e melhores escolhas alimentares dos estudantes. O ICC integrou um grupo de trabalho a convite do FNDE desde setembro de 2024, para que o documento fosse construído a muitas mãos com outras entidades, universidades e o governo. “Foi uma oportunidade para o ICC juntar-se a esses atores para debater o tema da inserção da educação alimentar nos currículos e propor orientações para sua viabilização pelas escolas de todo Brasil”, afirma Ariela Doctors, coordenadora-geral do Instituto Comida e Cultura. A nota técnica reconhece que a inserção da EAN no currículo escolar representa uma oportunidade de integrar, de forma permanente, práticas pedagógicas que promovam a alimentação adequada e saudável no ambiente escolar. Mas há muitos desafios para a plena implementação, como aponta o documento: lacunas na formação dos educadores sobre alimentação, nutrição, o PNAE e a própria EAN; ausência de planejamento específico; escassez de recursos financeiros; entre outros. A incidência do Instituto Comida e Cultura se dá, justamente, na formação de profissionais da educação em temas transversais à EAN. Em São Paulo, o ICC já formou mais de 1.000 educadores da rede municipal de ensino com o Programa Cozinhas e Infâncias, encorajando-os ao debate sobre educação alimentar e estimulando-os à prática. Cerca de 100 mil estudantes foram potencialmente impactados pelo projeto. Acesse a nota técnica completa aqui e conheça os princípios e estratégias propostos pelo FNDE para a inclusão da educação alimentar e nutricional no currículo escolar.
Feira de produtores e seminário sobre educação alimentar acontece em Chapada dos Guimarães-MT em julho

Evento gratuito é promovido pelo Instituto Comida e Cultura na Escola Estadual Rafael de Siqueira, com apoio da Prefeitura de Chapada dos Guimarães e do Ministério Público do Mato Grosso O município de Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, recebe o seminário “Cozinhas & Infâncias: Educação e Alimentação Escolar no Cerrado” no dia 5 de julho. O evento acontecerá na Escola Estadual Rafael de Siqueira. A programação inclui a apresentação de projetos pedagógicos em Educação Alimentar e Nutricional (EAN), além de uma feira de alimentos da sociobiodiversidade cultivados por produtores locais e atividades pensadas para as crianças. Os projetos em EAN são fruto do Programa Cozinhas e Infâncias na Chapada dos Guimarães, uma formação em educação alimentar voltada para professores, cozinheiras e gestores escolares, promovida pelo Instituto Comida e Cultura (ICC) em parceria com a Secretaria Municipal de Educação e o Ministério Público. “Com a inserção da educação alimentar na rotina escolar, é possível envolver toda a comunidade, desde a valorização do trabalho das cozinheiras enquanto educadoras, com a introdução de novas receitas, até o incentivo à gestão pública na compra e fomento de alimentos da sociobiodiversidade local. Para que a educação alimentar e nutricional nas escolas seja eficaz, é importante que essas ações sejam contínuas e permanentes”, destaca Flora Camargo, facilitadora de processos pedagógicos do Instituto Comida e Cultura. O seminário “Cozinhas & Infâncias: Educação e Alimentação Escolar no Cerrado” pretende ser uma oportunidade de polinizar as ações das educadoras que fizeram a formação do ICC, para que outros professores da rede municipal se inspirem a desenvolver suas próprias ações pedagógicas em EAN. “O projeto Cozinhas e Infâncias atua na base da educação alimentar de nossas crianças, trabalhando no ambiente onde elas passam a maior parte do tempo: as escolas. Nesta terceira etapa, o projeto visa fortalecer os profissionais que cozinham nas escolas públicas do município, ensinando técnicas inovadoras com alimentos locais. O objetivo também é reforçar o Guia Alimentar para a População Brasileira nas escolas públicas”, afirma Leandro Volochko, promotor de Justiça de Chapada dos Guimarães. Para Benedito Lechner, secretário municipal de Educação, o projeto do Instituto Comida e Cultura tem sido uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento alimentar educacional de Chapada dos Guimarães, especialmente considerando o perfil da população da zona rural. “Temos vários servidores engajados nesse projeto, alguns participando pela terceira edição, o que demonstra o impacto e a continuidade dessa iniciativa”, avalia. “Os professores estão adquirindo conhecimentos valiosos sobre os produtos do Cerrado, aprendendo a valorizá-los e a incorporá-los na alimentação escolar. Esse aprendizado já trouxe resultados concretos, como a inclusão do pequi e da farinha de baru no pregão eletrônico da merenda escolar, garantindo que nossos alunos tenham acesso a ingredientes naturais e nutritivos”, completa. Além das apresentações dos projetos das educadoras, a programação do seminário inclui uma mesa redonda sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e haverá distribuição do “Guia Orientador Educação Alimentar e Nutricional nas escolas municipais de Chapada dos Guimarães”, um manual desenvolvido pelo Instituto Comida e Cultura para auxiliar na implementação de práticas pedagógicas que promovam a reconexão com o alimento e o meio ambiente. Atividades para as crianças e a “Feira Sabores e Saberes” completam a agenda, e será possível comprar alimentos direto dos produtores, com foco na biodiversidade local. SERVIÇO: Seminário Cozinhas & Infâncias: Educação e Alimentação Escolar no Cerrado Feira de produtores com alimentos do Cerrado, atração cultural, rodas de conversa sobre educação alimentar, exibição de filme e atividades para as crianças. Local: Escola Estadual Rafael de Siqueira – Rua Tiradentes, 350, Chapada dos Guimarães/MT Quando: 5 de julho, das 8h às 13h30 Programação completa: 8h às 8h30 – Boas-vindas e abertura da feira8h30 às 10h30 – Apresentação de projetos: Educação Alimentar e Nutricional – Autonomia e Permanência10h30 às 11h – Intervalo com lanche11h às 11h30 – Performance cultural11h30 às 13h30 – Mesa redonda: Programa Nacional de Alimentação Escolar e suas diretrizes na Chapada dos Guimarães Programação para as crianças: 8h30 às 10h30 – Exibição de filme11h às 13h30 – Oficinas pedagógicas e lúdicas Feira Saberes e Sabores (produtores locais): aberta durante todo o evento, das 8h às 13h30.
José Graziano: “É mais difícil combater a obesidade do que a fome”

Conteúdo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, de autoria de Gabriela Caseff. O governo brasileiro precisa ajudar seu povo a comer melhor. Mas essa tarefa é mais difícil do que combater a fome. Esse é o diagnóstico de quem criou o programa Fome Zero e dirigiu o braço da ONU dedicado a erradicar a insegurança alimentar no mundo. Aos 75 anos, José Graziano da Silva avalia que o Brasil precisa avançar em ações para conter o avanço do sobrepeso e da obesidade no país, que afetam mais de 60% da população, de acordo com o Ministério da Saúde. Entre as medidas estão a tributação de bebidas açucaradas e a regulação da publicidade de alimentos como forma de desencorajar o consumo de alimentos ultraprocessados. “Não é responsabilidade da mãe que alimenta o filho. Ela tem que ser instruída. Ninguém é obrigado a entender as letras miúdas do rótulo. É um direito nosso saber o que estamos comendo em um país que tem um Ministério da Saúde encarregado de regular a saúde da população”, avalia. Ao fundar em 2020 o Instituto Fome Zero, Graziano diagnosticou uma mudança clara nos hábitos alimentares dos brasileiros, que recorriam aos congelados e enlatados diante de feiras e sacolões fechados na pandemia. No entanto, diz ele, a carne e o feijão foram deixando de fazer parte do prato e dando lugar à salsicha muito antes, com a urbanização e mudanças no mercado de trabalho. “O mundo produz mais alimento do que precisa, mas não o suficiente para alimentar todos de maneira saudável”, diz o ex-diretor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) que hoje vive no Chile. De lá, ele elenca um conjunto de medidas que levaram o país a frear essa epidemia, como a proibição da venda de alimentos ultraprocessados nas imediações de escolas chilenas. Em entrevista à Folha, o pai do programa que ajudou a tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014 —tendo retornado em 2022, com os impactos da pandemia— fala da obesidade como “tema ignorado ou debatido com preconceito”. Como o sr. avalia que o Brasil foi do Mapa da Fome à epidemia de obesidade? Quando lançamos o Fome Zero, nos anos 2000, o excesso de peso entre brasileiros não era uma preocupação. O problema se agravou com a urbanização e as mudanças no mercado de trabalho. Ficou mais difícil produzir a própria comida e fomos expostos a uma indústria alimentícia que oferece produtos de baixa qualidade. O pobre que foi expulso do campo em busca de dignidade foi morar em um deserto alimentar na cidade, onde não encontra estabelecimentos para comprar produtos frescos. Vinte anos depois, enquanto víamos o crescimento assustador da fome na pandemia, também diagnosticamos uma mudança clara nos hábitos alimentares dos brasileiros. As pessoas foram impedidas de ir a feiras livres e sacolões para evitar aglomerações. Foi uma época de inflação elevada dos alimentos, que acentuou a facilidade de comprar comida ultraprocessada, que é mais barata. O brasileiro mais pobre trocou a carne pelo frango e, depois, pela salsicha. E agora o Brasil lida novamente com inflação dos alimentos. Temos a contradição de sermos um grande produtor e um grande exportador de alimentos. Por um lado, nossa comida é barata comparada a outros países, pois tem menos taxação, mas nosso salário ainda é muito baixo. Cada vez mais produtos agrícolas têm preço fixo, sem margem, pois seu custo envolve petróleo, maquinário, fertilizantes, são como produtos industriais. E tem a exposição ao mercado internacional, que ‘dolariza’ tudo. O feijão, por exemplo, não é vendido em dólar, mas depende da comercialização de produtos como a soja. Isso faz com que a inflação do Brasil seja muito mais estrutural do que um problema agrícola, de safra. O mundo produz mais alimento do que precisa, mas não o suficiente para alimentar todos de maneira saudável. Sobram cereais. Trigo, milho, arroz. E faltam frutas, verduras e legumes, pois em uma dieta considerada saudável é preciso consumir cinco porções por dia desses alimentos. Isso é fruta e verdura de monte. O mundo não produz o suficiente para isso. A obesidade é um problema mais complexo do que a fome? Você não tem ideia da ginástica que fiz para começar a pagar o cartão Fome Zero no interior do Nordeste, em 2003. Não tínhamos nome e endereço das pessoas, precisava pegar no telefone da farmácia. Hoje chegamos no mais longínquo cidadão. A fome é facilmente resolvida no Brasil se tiver vontade política. As pessoas não comiam porque não tinham dinheiro, o Fome Zero melhorou o acesso à alimentação. O sobrepeso e a obesidade são mais complexos, implicam uma mudança de hábitos e participação cidadã. É mais difícil combater a obesidade do que a fome. Comer todo mundo quer. Ninguém quer passar fome. Mas não necessariamente todo mundo quer ou pode comer bem. E a obesidade se soma a problemas de ordem médica, a distúrbios, deficiências, diferentes metabolismos. O sobrepeso e a obesidade são considerados epidêmicos no Brasil e no mundo. O governo precisa interferir no que é consumido pelas famílias? Costumo dizer que quando faço uma opção pela homeopatia é uma opção individual. Não é uma orientação pública. Mas quando me alimento, como o que está disponível e que tem um preço que é, de alguma maneira, influenciado pelas políticas públicas. Então, é uma responsabilidade pública. Não é responsabilidade da mãe que alimenta o filho. Ela tem que ser instruída. Ninguém é obrigado a entender as letras miúdas ou aqueles aditivos todos do rótulo. É um direito nosso saber o que estamos comendo em um país que tem um Ministério da Saúde encarregado de regular a saúde da população. E a diferença no padrão regulatório da indústria alimentícia no Brasil em relação a outros países é notável. Leia a reportagem completa no site da Folha de S.Paulo.
Como a educação alimentar se conecta ao meio ambiente?

Desnutrição, doenças crônicas não transmissíveis e a mudança do clima ditam o curso da contemporaneidade e afetam a vida das pessoas por todo o planeta. Trata-se de um cenário que exige ações de curto, médio e longo prazos, com a promoção de uma reconexão com a natureza e proteção das infâncias – as de hoje e as do futuro. A Educação Alimentar e Nutricional (EAN) se mostra uma importante aliada na construção de sociedades resilientes e saudáveis. Nesse contexto, o Instituto Comida e Cultura (ICC) trabalha a EAN transversalmente, lado a lado com a educação ambiental. “Sugerimos, primeiramente, olhar para nossos hábitos alimentares e para a realidade do nosso planeta, para então conseguirmos reparar uma reconexão humana com a natureza e com a alimentação saudável e adequada”, defende Daniella Brochado, coordenadora pedagógica e de relações étnico-raciais do ICC. “Comemos todos os dias para obtermos energia e saúde para viver com qualidade. Ou seja, é um hábito diário e essencial. Por ser um hábito diário, é capaz de se modificar e transformar estruturas e o nosso entorno.” O ICC acredita no alimento como indutor de uma sociedade sustentável e atua na formação de educadores, promovendo a conscientização sobre os sistemas alimentares e seus impactos na saúde, sociedade e meio ambiente. Ao olhar para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), é possível encontrar muitas conexões entre alimentação e meio ambiente, de forma que a abordagem que propõe uma educação alimentar e ambiental ganha força. Um exemplo é o ODS 2, que trata de alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição, ao mesmo tempo em que se promove a agricultura sustentável. Ensinar às crianças, desde cedo, o caminho do solo à refeição tem o potencial de prepará-las para um presente e um futuro mais saudáveis e bem nutridos, além de abrir caminhos para o cultivo sustentável dos alimentos. Pense na diferença que atividades pedagógicas em hortas e cozinhas escolares pode causar: plantar, selecionar, colher, preparar, cozinhar e descartar os alimentos na escola são hábitos conectados à vida em comunidade e a como as crianças veem o planeta. Levar a educação alimentar e ambiental a todas as escolas, desde a educação infantil, promove escolhas mais justas e saudáveis. Segurança e soberania alimentar, produção, transporte, distribuição, acesso, impactos ambientais, culturas alimentares, herança histórica e cultural, além de técnicas e modos de preparo, são temas presentes na construção da educação que precisamos proporcionar às crianças. É por meio dessa educação, completa e transversal, que será possível redesenhar o futuro. Conheça mais sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que o ICC atrela a seu trabalho em educação alimentar e ambiental nos trechos destacados a seguir: ODS 2 – Fome zero e agricultura sustentável Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável. 2.1 Até 2030, acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano. 2.2 Até 2030, acabar com todas as formas de desnutrição, incluindo atingir, até 2025, as metas acordadas internacionalmente sobre nanismo e caquexia em crianças menores de cinco anos de idade, e atender às necessidades nutricionais dos adolescentes, mulheres grávidas e lactantes e pessoas idosas. 2.3 Até 2030, dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos, particularmente das mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores, inclusive por meio de acesso seguro e igual à terra, outros recursos produtivos e insumos, conhecimento, serviços financeiros, mercados e oportunidades de agregação de valor e de emprego não agrícola. ODS 3 – Saúde e bem-estar Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades. 3.4 Até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar. ODS 4 – Educação de qualidade Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos. 4.2 Até 2030, garantir que todos as meninas e meninos tenham acesso a um desenvolvimento de qualidade na primeira infância, cuidados e educação pré-escolar, de modo que eles estejam prontos para o ensino primário. 4.5 Até 2030, eliminar as disparidades de gênero na educação e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional para os mais vulneráveis, incluindo as pessoas com deficiência, povos indígenas e as crianças em situação de vulnerabilidade. 4.7 Até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável. 4.c Até 2030, substancialmente aumentar o contingente de professores qualificados, inclusive por meio da cooperação internacional para a formação de professores, nos países em desenvolvimento, especialmente os países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento. ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. 11.4 Fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo. 11.6 Até 2030, reduzir o impacto ambiental negativo per capita das cidades, inclusive prestando especial atenção à qualidade do ar, gestão de resíduos municipais e outros. 11.b Até 2020, aumentar substancialmente o número de cidades e assentamentos humanos adotando e implementando políticas e planos integrados para a inclusão, a eficiência dos recursos, mitigação e adaptação às mudanças climáticas, a resiliência a desastres; e desenvolver e implementar, de acordo com o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres 2015-2030, o gerenciamento holístico do risco de desastres em todos os níveis. 11.c Apoiar os países menos desenvolvidos, inclusive por meio de assistência técnica e financeira, para construções sustentáveis e resilientes, utilizando materiais
O paladar infantil é sempre uma proposta adulta

Artigo de Murilo Góes, integrante do projeto ComidaETC O que mais me mobiliza a interagir com os estudos sobre culturas alimentares é o fato de que todos nós precisamos comer. Como seres sociais complexos, escolhemos o que deglutir, sempre que possível; nesse sentido é que desde a infância a comida, além de nutrir nossa fisiologia, torna-se também responsável por desenvolver identidades. Ingredientes e pratos são assimilados a dietas alimentares por fatores históricos, sociológicos, ambientais, econômicos, e, portanto, culturais. A comida também envolve uma série de escolhas relacionadas à preparação e ao consumo que ampliam a cadeia de sentidos. Espelhamos o que comemos, mas também comemos o que simbolicamente reflete nossas identidades. Nessa perspectiva, conversar sobre comida é uma proposta expandida de leituras, em que frequentemente dialogamos com as diversidades e também as adversidades – sobretudo em geografias marcadas por desigualdades socioeconômicas. Antes mesmo de ser infantil, o meu paladar, por exemplo, foi perversamente gestado pela industrialização adulta dos anos 90 e literalmente amamentado com muito açúcar, muita gordura, personagens animados, propagandas questionáveis, brindes diversos, status de pertencimento e uma persistente promessa de praticidade para que meus pais preparassem nossas refeições. Diversos já são os estudos demarcadores da relação entre alimentação e saúde. Procuro destacar que o conceito de saúde contempla reflexões sociais de múltiplos horizontes, que incluem sustentabilidade ecológica, bem-estar e identidade cultural – isso se ficarmos apenas em alguns exemplos. Para falar em saúde, no entanto, costumeiramente priorizamos referenciações fundamentadas em doenças. Nesse sentido, sublinho que, desde 1948, a Organização Mundial de Saúde compreende a obesidade como doença crônica, progressiva e recidivante – o que hoje já determina um cenário de epidemia global, afetando também crianças e bebês, por causas variadas e prioritariamente ligadas à alimentação. Se a comida, portanto, modula uma coletividade em identidades e tradições, defendo que também é possível mobilizar uma cultura a partir das reflexões proporcionadas pela comida nos muitos contextos em que ela é presentificada. Exatamente por isso que pensar na escola como espaço educativo onde há oferta de comida permite considerar inúmeras perspectivas para alimentar o debate. Analisando dados do Censo Escolar de 2023 relacionados à educação infantil, as dinâmicas de alimentação escolar corroboraram para o desenvolvimento de cerca de 6,8 milhões de crianças atendidas nacionalmente entre creches e pré-escolas. Se parearmos com os dados registrados pelo Censo Demográfico de 2022, concluímos que cerca de 44% do total de crianças brasileiras de até 5 anos alimentam-se nas instituições públicas relativas à primeira etapa da educação básica. Por se relacionar com expressivo percentual de pessoas diretamente impactadas, e considerando que a oferta de refeições acompanha o funcionamento das unidades de educação que acontece, em média, 5 dias por semana, é preciso reconhecer a relevância que a alimentação escolar assume na nutrição, bem como na arquitetônica do paladar e da cultura alimentar de uma densa coletividade de crianças no país. Alimentação escolar refere-se a “todo alimento oferecido no ambiente escolar, independentemente de sua origem, durante o período letivo”, conforme definição da lei 11.947, de 2009, que institui as principais diretrizes para o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE. Os textos que delineiam o programa também destacam a relevância de oportunizar práticas para educação alimentar e nutricional, bem como uma oferta de refeições que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis. Na educação infantil, convém realçar, vivências de alimentação encenam oportunidades para articulação de experiências e de saberes das crianças com conhecimentos que fazem parte dos patrimônios cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico – indicados, por exemplo, na definição de currículo evidenciada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), em 2009. As duas orientações legais aqui citadas posicionam a prática de comensalidade diretamente vinculada a fatores culturais e projetam oportunidade de a Alimentação Escolar ensejar essa lógica. Para isso, além de uma oferta de refeições que supere o conceito de alimentação saudável exclusivamente imbricado a referências nutricionais, torna-se necessário investir em ações de Educação Alimentar e Nutricional que também reconheçam as representações e os conhecimentos associados à sociabilidade do comer. Entendendo que as normativas expressam movimentos dialógicos, sigo no desejo de que a abordagem sobre cultura alimentar e seus horizontes de possibilidades educativas consiga interagir com iniciativas ligadas à integração das ações de cuidado e de educação com crianças pequenas. Talvez nessa direção possamos redimensionar campos semânticos do “paladar infantil” para que crianças sejam menos impactadas pela mercantilização precarizada de um comer que cada vez mais problematiza índices de qualidade de vida. Sobre o autor Murilo Góes é gastrônomo e professor, mestre em Ensino de Humanidades e doutorando em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Desenvolve eventos e trabalhos artísticos sobre alimentação, além de pesquisas sobre potencialidades educativas da comida.
Superar a lógica dos ultraprocessados exige cozinhar mais e debater gênero

Conteúdo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, de autoria de Patricia Jaime Por trás da promessa de conveniência, substitui-se a refeição compartilhada pela embalagem unitária, o saber ancestral pela neutralidade tecnológica Alimentos ultraprocessados são produtos industriais que dominam as prateleiras e atravessam culturas. Provocam mudanças nos padrões alimentares em escala global, com elevação do risco para doenças crônicas, como trazido à tona de forma pioneira por pesquisadores brasileiros. Mas é pouco debatida a transformação causada pelas dietas ultraprocessadas nas relações sociais com a comida. Por trás da promessa de conveniência, há um processo silencioso: a substituição da refeição compartilhada pela embalagem unitária; da cozinha pelo microondas; do saber ancestral pela neutralidade tecnológica. O Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, recomenda: “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”. Cozinhar, assim, não é só prática cotidiana: é central à promoção da saúde, da sustentabilidade e da cultura alimentar. Contudo, exige tempo, energia e conhecimento —recursos desigualmente distribuídos e pouco valorizados socialmente. É aqui que o debate exige atenção ao gênero. Historicamente, cozinhar tem sido visto como “coisa de mulher“, associado ao cuidado e ao ambiente doméstico. A construção cultural naturalizou a sobrecarga feminina na gestão alimentar e invisibiliza o valor desse trabalho. Dados do IBGE ilustram essa desigualdade: em 2022, entre trabalhadores remunerados, as mulheres dedicavam, em média, 17,8 horas semanais aos afazeres domésticos, contra 11 horas dos homens. Como argumenta Silvia Federici em “Calibã e a Bruxa”, a acumulação primitiva do capitalismo explorou o corpo feminino e desvalorizou saberes ligados ao cuidado —como parir, alimentar, cuidar, cozinhar. O trabalho reprodutivo das mulheres foi historicamente relegado ao espaço privado, fora da lógica do valor econômico. Ainda assim, muitas, sobretudo pretas e pardas, encontraram no cuidado e no trabalho doméstico formas de inserção no mercado de trabalho e sobrevivência. O reconhecimento legal desse trabalho é recente e ainda em construção. Não à toa as habilidades culinárias vêm diminuindo nas gerações mais jovens. Muitas mulheres, conscientes das desigualdades ou exaustas por jornadas duplas, afastam-se da cozinha ou recorrem aos ultraprocessados como alívio diante da sobrecarga. Reverter o cenário de crescente presença dos ultraprocessados na alimentação exige estratégias diversas e sensíveis às desigualdades sociais. Envolve políticas públicas de regulação, rotulagem, educação alimentar e acesso a alimentos saudáveis. Mas exige, sobretudo, reposicionar o debate de gênero como eixo estratégico. Superar a lógica dos ultraprocessados requer uma nova ética do cuidado que valorize cozinhar como bem comum, responsabilidade coletiva e prática transformadora. Resgatar o valor do cozinhar não é retorno nostálgico ao passado, nem nova culpa imposta às mulheres. É reconhecer que o saber tem potência decisiva para a saúde pública e a equidade. Os desafios ambientais e de saúde exigem maior acesso a alimentos saudáveis, não só no lar mas também em locais de trabalho, escolas, hospitais, centros comunitários e espaços de mobilidade. É estratégico posicionar o ato de cozinhar para além da vida privada, transpô-lo ao espaço público, criando alternativas concretas para que todos possam comer comida de verdade, preparada por cozinheiras e cozinheiros valorizados e remunerados por seu trabalho. Leia o artigo completo no site da Folha de S.Paulo. Sobre a autora Patricia Jaime é nutricionista, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordenadora científica do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens-USP) e conselheira do Instituto Comida e Cultura.
Cozinhas e Infâncias leva educação alimentar ao Mato Grosso, com resgate da sociobiodiversidade

Primeiro município a receber o programa Cozinhas e Infâncias Territórios, Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, tem o Cerrado estampado em suas ruas, mesas, rostos. O segundo maior bioma brasileiro é repleto de saberes e sabores próprios, e uma cultura alimentar rica e diversa pronta para ganhar espaço nas cozinhas das novas gerações. Esse resgate da sociobiodiversidade é um dos objetivos do Cozinhas e Infâncias, promovido no território pelo Instituto Comida e Cultura (ICC), em parceria com o Ministério Público de Mato Grosso, a Promotoria de Justiça de Chapada dos Guimarães e a Prefeitura de Chapada dos Guimarães. O programa é uma formação em educação alimentar voltada a professores, nutricionistas, cozinheiras e gestores escolares da rede pública de ensino. A imersão em Chapada dos Guimarães teve início em 2023, com atividades pedagógicas que estimulam a reconexão com o entorno e com as culturas alimentares ancestrais. Ao final de duas fases formativas, 40 educadores estavam capacitados a levar a Educação Alimentar e Nutricional (EAN) a suas comunidades escolares, com um alcance de cerca de 1.000 crianças beneficiadas. Em 2025, o programa chegou à sua terceira fase no município, com foco no auxílio à implementação das práticas pedagógicas em educação alimentar idealizadas pelas professoras. “O projeto Cozinhas e Infâncias trabalha pela educação alimentar e mergulha na cultura culinária local como porta de entrada para o debate da sociobiodiversidade. Ele conecta práticas agrícolas que apoiam a produção de alimentos, identidade e tradições, sabores, saúde, educação e meio ambiente, para motivar e movimentar um espaço político favorável à sua conservação”, explica Daniella Brochado, coordenadora pedagógica e de relações étnico-raciais do Instituto Comida e Cultura. “Hoje, o Cerrado é nosso bioma mais ameaçado e o projeto convoca educadores do ‘coração do Brasil’ a uma reflexão emancipatória sobre as possibilidades de sistemas alimentares mais saudáveis a partir de uma atitude protagonista e uma nova consciência alimentar”, completa. No caso de Chapada dos Guimarães, a valorização dos saberes e sabores do Cerrado traduziu-se ainda na atuação do ICC junto à prefeitura para inserção de produtos da sociobiodiversidade na Chamada Pública do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) do município. No edital de compras de alimentos para a merenda escolar de 2025 figuram o pequi, fruta nativa que é considerada o “ouro do Cerrado”, e a castanha de baru, oleaginosa rica em nutrientes e que também tem origem no bioma. Para Flora Camargo, facilitadora de processos pedagógicos no ICC, a inserção do pequi e do baru na Chamada Pública do PNAE representa um grande avanço, pois deve beneficiar as comunidades por meio de geração de renda e valorização das culturas e saberes locais, aliado à conservação do Cerrado. “Essa ação representa um primeiro passo necessário para uma jornada maior que visa olhar para a educação alimentar e nutricional nas escolas por meio do fortalecimento dos territórios e da mudança dos cardápios, priorizando os produtos in natura aos ultraprocessados. Nossa expectativa é estimular as comunidades locais e, na sequência, conseguir ampliar a inserção para outros alimentos, como as diversas frutas do Cerrado: mangaba, caju, jatobá, entre outros”, diz Flora. As negociações para a inserção de alimentos nativos e sociobiodiversos na chamada pública estava em curso desde o fim de 2024. Um levantamento prévio de comunidades e de produtos que estão mais acessíveis no município indicou a viabilidade do baru e da polpa de pequi em um primeiro momento. Com os dados em mãos e em parceria com as nutricionistas responsáveis pelos cardápios da merenda escolar, chegou-se à lista final de alimentos para inserção na chamada pública. “É importante atuarmos para a formulação das políticas públicas. Fizemos essa incidência na chamada pública e temos outros pontos a considerar sobre a merenda escolar. A merenda é o ponto de confluência, porque não tem como a gente promover educação alimentar nas escolas, estimulando uma alimentação saudável, e fornecer uma alimentação de má qualidade e rica em ultraprocessados”, finaliza Flora.
O septuagenário de um aliado das infâncias brasileiras: PNAE completa 70 anos em 2025 e beneficia cerca de 41 milhões de estudantes no país

Autoras: Erika Fischer¹ e Jaqueline Lopes Pereira² Toda criança e adolescente tem direito à alimentação adequada, à saúde, à educação e ao desenvolvimento pleno, garantias consagradas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em tratados internacionais. No entanto, quando observamos os indicadores relacionados à má nutrição no país, percebemos que ainda estamos longe de garantir esses direitos a todas as infâncias brasileiras. A insegurança alimentar é mais prevalente em domicílios onde vivem crianças e adolescentes. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023, cerca de um terço desses lares conviviam com algum grau de insegurança alimentar. Desses, quase 5% enfrentavam a fome. Ao mesmo tempo, dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) de 2023 estimam que 14% dos menores de cinco anos e 34% daqueles entre 5 e 19 anos estavam com excesso de peso. Essa dupla carga da má nutrição revela um paradoxo alarmante, que exige ações articuladas entre diferentes setores envolvidos nos sistemas alimentares. Nesse contexto, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) destaca-se como uma das principais políticas de proteção social, sendo o segundo maior programa de alimentação escolar do mundo e o mais antigo do Brasil. Seu objetivo é promover o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem e hábitos saudáveis por meio de refeições balanceadas e ações educativas. Criado em 1955, o PNAE atende de forma universal e gratuita alunos da educação infantil, fundamental, médio e EJA em escolas públicas, filantrópicas e comunitárias. Suas diretrizes consideram diversidades étnicas, necessidades nutricionais por idade e vulnerabilidade social, com repasses de recursos diferenciados para educação infantil, indígenas e quilombolas. Com um orçamento anual superior a R$ 6 bilhões, o PNAE mobiliza uma ampla estrutura para acontecer: são aproximadamente sete mil nutricionistas e 90 mil conselheiros atuando na fiscalização do programa. Essa engrenagem beneficia cerca de 41 milhões de estudantes (o que representa 20% da população brasileira), em mais de 150 mil escolas, garantindo diariamente 50 milhões de refeições. A Lei nº 11.947/2009 foi um marco, assegurando atendimento universal em 200 dias letivos, incluindo educação alimentar no currículo, controle social e diretrizes nutricionais, como suprir 20% das necessidades nutricionais diárias dos alunos. O PNAE também promove a aquisição de alimentos da agricultura familiar (mínimo 30% dos recursos), regionais, da sociobiodiversidade, orgânicos e agroecológicos, fortalecendo a economia local e a agroecologia. Em 2025, a Resolução CD/FNDE nº 3 atualizou as diretrizes nutricionais do programa, determinando que ao menos 80% dos recursos sejam destinados à compra de alimentos in natura ou minimamente processados, percentual que sobe para 85% em 2026. Já os alimentos ultraprocessados ficam limitados a 15% (10% a partir de 2026), e os ingredientes culinários, a 5%. A norma também recomenda evitar produtos com rotulagem frontal de alto teor de nutrientes críticos e valoriza a diversidade alimentar, ao incentivar que cada município adquira ao menos 50 tipos diferentes de alimentos in natura por ano. Apesar dos desafios que enfrenta, o PNAE é uma estratégia central para transformar os sistemas alimentares com foco na equidade, sustentabilidade e respeito à cultura alimentar. Suas ações integram políticas de nutrição, educação, agricultura e saúde pública, impactando diretamente milhões de estudantes e promovendo a defesa e ampliação dos direitos das infâncias. Com articulação intersetorial, o programa combate a fome e a insegurança alimentar, promove educação e desenvolvimento sustentável, valoriza a sociobiodiversidade e fortalece o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), contribuindo para que os sistemas alimentares sejam ferramentas reais de garantia e promoção dos direitos de todas as infâncias. ¹Erika Fischer é gestora pública especializada em programas de alimentação escolar e segurança alimentar e atua como consultora de relações institucionais do Instituto Comida e Cultura (ICC). É responsável pelo desenvolvimento de parcerias e apoia processos de monitoramento e avaliação do ICC. ²Jaqueline Lopes Pereira é pesquisadora e mentora do Sustentarea. É pós-doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP, graduada em Nutrição, Mestre e Doutora em Ciências pela mesma instituição na área de Nutrição em Saúde Pública, com doutorado sanduíche no Departamento de Nutrição da Harvard T. H. Chan School of Public Health.
Formação em educação alimentar chega a Curitiba com o programa Cozinhas e Infâncias

Quando aprendem desde cedo, as crianças semeiam conhecimento por onde vão. São saberes que incluem conhecer seus direitos e deveres, desenvolver habilidades emocionais e técnicas, e aprender a cuidar de si, do outro e do planeta. Para promover a semeadura de saberes sobre alimentação, história e meio ambiente, o Instituto Comida e Cultura (ICC) trabalha, desde 2022, com a formação de educadores por meio do Programa Cozinhas e Infâncias. Em 2025, enquanto esta experiência multidisciplinar inicia sua terceira fase em São Paulo, o Cozinhas e Infâncias chega a Curitiba, capital do Paraná. O projeto acontece por meio de um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre o ICC e a Prefeitura de Curitiba, e vem para potencializar o projeto “Mãos na massa”, já em desenvolvimento pela prefeitura nas escolas municipais, a partir da metodologia desenvolvida pelo Instituto Comida e Cultura. “O programa Cozinhas e Infâncias tem o alimento como ferramenta, falando muito da história geral e do Brasil. A gente decoloniza esses conceitos e traz para os educadores, principalmente de cidades no Sul e no Sudeste, uma realidade de um Brasil da qual eles estão mais distantes. E acredito que o mais poderoso nesse curso é ser uma ferramenta de união do grupo de cursistas”, afirma Ana Vasconcelos, facilitadora nos programas de formação do ICC. Onze escolas municipais dos anos finais do ensino fundamental participam do Cozinhas e Infâncias na capital paranaense. Com o apoio do Instituto Bia Rabinovich (IBR), a expectativa é sensibilizar 40 educadores, que serão capazes de disseminar a educação alimentar integrativa e transformar vidas em suas comunidades. O curso é distribuído em sete módulos, ministrados no primeiro semestre de 2025. “Fomentar a educação alimentar nas escolas brasileiras é uma estratégia poderosa de transformação social. Quando investimos na formação de educadores para levarem esse conhecimento às salas de aula, estamos indo muito além da promoção de hábitos saudáveis. Estamos enfrentando desigualdades históricas que afetam milhões de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade”, defende Carla Mourão, diretora executiva do IBR. “Ao capacitarmos educadores da rede pública, damos a eles ferramentas para formar uma geração mais consciente, crítica e preparada para construir um futuro mais justo, sustentável e solidário. E ao patrocinar iniciativas como essa, reafirmamos nosso propósito de fomentar projetos que geram impacto social concreto e contribuem para a construção de um sistema alimentar mais justo, saudável e consciente em todo o Brasil”, completa. De acordo com o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 24% da população de Curitiba se autodeclara preta ou parda. Esse percentual faz da cidade a capital com maior número de pessoas negras da região sul do Brasil. E, como resultado das desigualdades sociais por cor e raça no país, percebe-se maiores níveis de vulnerabilidade socioeconômica nas populações preta, parda e indígena. “Há muitas pessoas negras em Curitiba, mas a maior parte é periférica. Uma das professoras participantes é uma mulher negra e relatou o quanto o curso estava sendo importante para ela sentir que está no caminho certo, que não deve desistir. Foi muito emocionante ver que pudemos dar apoio às decisões que ela vai tomar a partir da conscientização de quem ela é”, conta Ana Vasconcelos. A educadora a quem Ana se refere é Lígia Krelling, que atua como técnica da equipe de ciências no Departamento do Ensino Fundamental da Prefeitura de Curitiba. Ela conta que se identificou com a abordagem sobre decolonidade na aula de abertura do Cozinhas e Infâncias. Quando escreveu sua tese de doutorado sobre as hortas comunitárias de Curitiba, Lígia diz que não incluiu o recorte de que a maior parte das pessoas que frequentavam esses espaços eram mulheres negras. Hoje, em outro momento de vida, está lendo sobre a Cida Bento, Sueli Carneiro e outras autoras negras que trazem esse recorte. “Como uma mulher negra, eu preciso participar desse grupo de estudos, e hoje eu já traria uma outra perspectiva para a minha pesquisa. Ao chegar aqui e ver a Ana falando, me identifiquei e me reconheci nela. Fiquei muito feliz de ver uma mulher negra numa posição de destaque e de perceber que o curso vai trazer essa perspectiva decolonial para o currículo e para a questão da alimentação, o que é muito significativo e importante. Esse é um lugar ao qual precisamos pertencer e existir, e agradeço muito a oportunidade de fazer esse curso.” Tem interesse em colaborar conosco? Se você tem um projeto de educação alimentar em andamento e gostaria que o Instituto Comida e Cultura leve sua metodologia pedagógica para a sua cidade, entre em contato conosco neste canal. Juntas e juntos, podemos levar educação alimentar a todas as crianças do Brasil!