Autoras: Erika Fischer¹ e Jaqueline Lopes Pereira²
Toda criança e adolescente tem direito à alimentação adequada, à saúde, à educação e ao desenvolvimento pleno, garantias consagradas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em tratados internacionais. No entanto, quando observamos os indicadores relacionados à má nutrição no país, percebemos que ainda estamos longe de garantir esses direitos a todas as infâncias brasileiras.
A insegurança alimentar é mais prevalente em domicílios onde vivem crianças e adolescentes. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023, cerca de um terço desses lares conviviam com algum grau de insegurança alimentar. Desses, quase 5% enfrentavam a fome. Ao mesmo tempo, dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) de 2023 estimam que 14% dos menores de cinco anos e 34% daqueles entre 5 e 19 anos estavam com excesso de peso. Essa dupla carga da má nutrição revela um paradoxo alarmante, que exige ações articuladas entre diferentes setores envolvidos nos sistemas alimentares.
Nesse contexto, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) destaca-se como uma das principais políticas de proteção social, sendo o segundo maior programa de alimentação escolar do mundo e o mais antigo do Brasil. Seu objetivo é promover o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem e hábitos saudáveis por meio de refeições balanceadas e ações educativas.
Criado em 1955, o PNAE atende de forma universal e gratuita alunos da educação infantil, fundamental, médio e EJA em escolas públicas, filantrópicas e comunitárias. Suas diretrizes consideram diversidades étnicas, necessidades nutricionais por idade e vulnerabilidade social, com repasses de recursos diferenciados para educação infantil, indígenas e quilombolas.
Com um orçamento anual superior a R$ 6 bilhões, o PNAE mobiliza uma ampla estrutura para acontecer: são aproximadamente sete mil nutricionistas e 90 mil conselheiros atuando na fiscalização do programa. Essa engrenagem beneficia cerca de 41 milhões de estudantes (o que representa 20% da população brasileira), em mais de 150 mil escolas, garantindo diariamente 50 milhões de refeições.
A Lei nº 11.947/2009 foi um marco, assegurando atendimento universal em 200 dias letivos, incluindo educação alimentar no currículo, controle social e diretrizes nutricionais, como suprir 20% das necessidades nutricionais diárias dos alunos. O PNAE também promove a aquisição de alimentos da agricultura familiar (mínimo 30% dos recursos), regionais, da sociobiodiversidade, orgânicos e agroecológicos, fortalecendo a economia local e a agroecologia.
Em 2025, a Resolução CD/FNDE nº 3 atualizou as diretrizes nutricionais do programa, determinando que ao menos 80% dos recursos sejam destinados à compra de alimentos in natura ou minimamente processados, percentual que sobe para 85% em 2026. Já os alimentos ultraprocessados ficam limitados a 15% (10% a partir de 2026), e os ingredientes culinários, a 5%. A norma também recomenda evitar produtos com rotulagem frontal de alto teor de nutrientes críticos e valoriza a diversidade alimentar, ao incentivar que cada município adquira ao menos 50 tipos diferentes de alimentos in natura por ano.
Apesar dos desafios que enfrenta, o PNAE é uma estratégia central para transformar os sistemas alimentares com foco na equidade, sustentabilidade e respeito à cultura alimentar. Suas ações integram políticas de nutrição, educação, agricultura e saúde pública, impactando diretamente milhões de estudantes e promovendo a defesa e ampliação dos direitos das infâncias. Com articulação intersetorial, o programa combate a fome e a insegurança alimentar, promove educação e desenvolvimento sustentável, valoriza a sociobiodiversidade e fortalece o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), contribuindo para que os sistemas alimentares sejam ferramentas reais de garantia e promoção dos direitos de todas as infâncias.
¹Erika Fischer é gestora pública especializada em programas de alimentação escolar e segurança alimentar e atua como consultora de relações institucionais do Instituto Comida e Cultura (ICC). É responsável pelo desenvolvimento de parcerias e apoia processos de monitoramento e avaliação do ICC.
²Jaqueline Lopes Pereira é pesquisadora e mentora do Sustentarea. É pós-doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP, graduada em Nutrição, Mestre e Doutora em Ciências pela mesma instituição na área de Nutrição em Saúde Pública, com doutorado sanduíche no Departamento de Nutrição da Harvard T. H. Chan School of Public Health.