Artigo de Ariela Doctors e Brena Barreto
Você já ouviu falar em sindemia? Esse termo está relacionado aos desafios que enfrentamos atualmente na saúde pública, principalmente quando falamos de alimentação, doenças crônicas e mudanças climáticas. Ele também nos ajuda a entender por que a Educação Alimentar e Nutricional (EAN), a Educação Sistêmica, e a Educação Ambiental são necessárias, principalmente na infância.
O conceito de sindemia global descreve a interação entre três crises contemporâneas: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas¹. Elas coexistem e se potencializam, compartilhando as mesmas causas, como sistemas alimentares insustentáveis e desigualdades sociais. Seus efeitos não são iguais para todas as populações, afetando desproporcionalmente grupos mais vulneráveis, como as crianças.
Os efeitos da sindemia global na infância
A má alimentação na infância, seja por excesso ou por deficiência de nutrientes, pode comprometer o crescimento físico e o desenvolvimento cognitivo ao longo da vida. Milhões de crianças em todo o mundo enfrentam simultaneamente as diferentes formas de má nutrição (como desnutrição, obesidade e deficiências nutricionais), em um contexto marcado pelo aumento do consumo de alimentos ultraprocessados. Esses produtos, estão associados a um maior risco de obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis².
Somam-se a esse quadro os efeitos dos eventos climáticos extremos, como enchentes e secas, que impactam a produção de alimentos, dificultando o acesso a alimentos frescos e nutritivos. Crianças que vivem em comunidades de baixa renda e em zonas rurais estão entre as mais impactadas por essa realidade³.
Diante dessa complexidade, precisamos de respostas que não se limitem a soluções pontuais ou técnicas. É nesse cenário que a EAN, aliada à Educação Ambiental e à Educação Sistêmica, se torna uma estratégia transformadora.
Educação Sistêmica: enxergar as conexões
A Educação Sistêmica propõe olhar o mundo de forma integrada4. Em vez de tratar saúde, alimentação, meio ambiente e cultura como temas separados, ela reconhece as interconexões entre eles. Essa abordagem convida escolas a integrarem saberes, territórios e afetos, promovendo uma aprendizagem significativa e comprometida com a vida.
Quando aplicada à EAN, a visão sistêmica permite entender que comer não é apenas uma necessidade biológica, mas um ato cultural, político, ambiental e relacional. Ao desenvolver esse olhar nas crianças e jovens, a escola contribui para formar cidadãos conscientes do seu papel na transformação do mundo.
A escola como espaço de transformação
No Brasil, a Lei nº 11.947/2009 fortaleceu o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)5, garantindo refeições saudáveis na escola e incentivando a compra de alimentos da agricultura familiar. Com a Lei nº 13.666/2018, a EAN passou a fazer parte do currículo escolar, reafirmando seu papel na formação integral.
Mas a educação alimentar não se resume a conteúdos sobre nutrientes. Na prática, ela se manifesta em hortas pedagógicas, oficinas de culinária, rodas de conversa, visitas a feiras, projetos sobre agroecologia. Tudo isso ajuda os estudantes a refletirem: o que comemos? De onde vem? Como é produzido? Quem lucra e quem perde nesse processo?
Educação alimentar e ambiental: o mesmo caminho
A crise ambiental e alimentar têm uma raiz comum: um sistema que desrespeita os ciclos da natureza, os saberes tradicionais e os direitos humanos. Produção intensiva, uso de agrotóxicos, desperdício e emissão de gases de efeito estufa fazem da alimentação um dos principais vetores da destruição ambiental.
Por isso, Educação Alimentar e Ambiental precisam andar juntas — e de forma sistêmica. Ao trabalhar com os estudantes os impactos do consumo alimentar, a valorização da cultura local, a importância da sociobiodiversidade e o respeito à terra, a escola contribui para uma mudança de consciência que se traduz em atitudes.
Comer é um ato político e relacional
Inspirada em Paulo Freire6, a EAN defende o diálogo, a escuta e a valorização das experiências alimentares dos sujeitos. Comer é um ato político, afetivo e identitário. É também um ato de pertencimento: ao corpo, à comunidade, ao território.
Frente à sindemia global, uma educação com visão sistêmica é mais do que necessária — é urgente. Ela nos ajuda a compreender o mundo como uma teia de relações vivas, e nos convida a agir com consciência, responsabilidade e empatia.
Educar para comer melhor é, também, educar para ser, conviver, transformar, reconhecer e defender direitos. E esse caminho pode começar no cotidiano das escolas!
REFERÊNCIAS
- Swinburn, B. A. et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: the Lancet Commission report. The lancet, v. 393, n. 10173, p. 791-846, 2019.
- Agostoni, C. et al. Interlinkages between climate change and food systems: the impact on child malnutrition—narrative review. Nutrients, v. 15, n. 2, p. 416, 2023.
- Cooper, M. W. et al. Mapping the effects of drought on child stunting. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 116, n. 35, p. 17219-17224, 2019.
- WILBER, K. An integral theory of consciousness. Journal of Consciousness Studies v. 4, n 1, p.71-92, 1997.
- BRASIL. LEI Nº 11.947, DE 16 DE JUNHO DE 2009. Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11947.htm.
- FREIRE, P., Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire – São Paulo: Paz e Terra, p.285, 1996. – (Coleção Leitura) ISBN 85-219-0243-3.
Sobre as autoras
Ariela Doctors é coordenadora-geral e coautora dos processos pedagógicos do Instituto Comida e Cultura, é comunicadora, escritora e chef de cozinha. Membro do Conselho Educação e Território do Instituto Aprendiz, tem ampla experiência em educação sistêmica e cursa mestrado em Nutrição em Saúde Pública na USP.
Brena Barreto Barbosa é pesquisadora e mentora do Sustentarea. É Mestra em Nutrição e Saúde pela Universidade Estadual do Ceará.